Vitor Tokoro – 02-jul-2021 / 08:31
Quando a pandemia começou de fato aqui no brasil, em meados de março retrasado, lembro da minha reação, um certo espanto misturado com incredulidade sobre o que estava pairando sobre a face da terra para os humanos. minha reação instantânea foi voltar para o interior correndo para cuidar da mãe. dispensei cuidadora, faxineira, fisioterapeuta e, de súbito, assumi a rotina diária de uma casa, como há muito não fazia. a amada entre o espanto e o “não é possível”, achava que acabaria lá por maio, uns dois meses mais à frente, pensava nas aulas, nos alunos, no cotidiano na escola. pensava na rotina com a filha. minha mãe não pensava nada disso, já com idade avançada, pouco saía de casa, para ela o que mudou foi não ter as pessoas por perto ou ir dar uma voltinha no shopping em bauru vez por outra.
Neste meu nano-universo, três reações distintas. passei os três primeiros meses em estado de alerta, beirando a insanidade mental, às vezes ultrapassando o limite.
Lá se vão quinze meses, fomos forçados a mudar de comportamento, pesquisa mundial recente mostra que a pandemia surtiu efeito devastador sobre os brasileiros. uma das explicações dos pesquisadores é que no hemisfério norte, frio a maior parte do tempo, as pessoas já estão acostumadas a ficar reclusas. aqui não, somos para fora, buscamos o sol, a rua, a praia, a aglomeração.
Olhando agora deste meu posto de observação, me aquecendo ao sol depois da noite fria, vejo como mudei, como me afastei de tudo e de todos. a tecnologia ajudou muito, senão, provavelmente estaria no fundo da caverna com medo das sombras.
Neste interregno minha mãe mudou de cidade, a filha da amada conseguiu sem primeiro emprego e já pulou para um estágio afim de sua área de estudo, meu pai operou o fêmur, sarou, tá andando que é uma beleza, colocou um marca-passo, minha irmã e meu cunhado reformaram o quintal, agora tem um solário delícia para ver o por do sol, o verão chegou na parte baixa da europa, a turma de lá está feliz e sorrindo pelo arrefecimento do vírus, eu tenho três livros inacabados e mais de uma centena de contos para revisar.
A vida anterior ficou, os amigos velhos e os novos estão seguindo, indo para o egito, correndo maratona, terminando especialização.
Olhando agora neste meu posto de observação, percebo que nada mudou, a vida continua seu curso, já vínhamos num isolamento. como disse um filósofo (ou filósofa, maldita língua portuguesa) que nunca lembro o nome, não estamos numa única bolha, cada um está em sua pico-bolha, formando uma grande espuma, estamos perto, mas apartados. parece tendência isso.
Esse treco de escrever tem ajudado, me sinto sentado num boteco trocando ideia, com a vantagem de poder iniciar e terminar meu pensamento sem interrupção, com a desvantagem de não escutar a outra parte, de não ter a cerveja gelada, da balbúrdia dos jovens, do encontro de músicos ali e depois sair em caravana para o porão do lado do pernil do estadão para tocar até o dia surgir, de não ter o abraço na hora que a música toca mais forte, de cerrar um cigarro, de sentar à mesa com um desconhecido que está ali de passagem proveniente de uma cidade do sul de minas, de não chegar breaco em casa quando o sol começa a sair, de não sentir o azedo do excesso na boca, no fígado e no pulmão.
Que as desvantagens ressurjam logo.