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CAMPBELL: Mitos são pistas para as potencialidades da vida humana.
MOYERS: Você mudou a definição de mito, de busca de sentido para experiência de sentido.
CAMPBELL: Lendo mitos. Eles ensinam que você pode se voltar para dentro, e você começa a captar a mensagem dos símbolos. Leia mitos de outros povos, não os da sua própria religião, porque você tenderá a interpretar sua própria religião em termos de fatos mas lendo os mitos alheios você começa a captar a mensagem. O mito o ajuda a colocar sua mente em contato com essa experiência de estar vivo. Ele lhe diz o que a experiência é. Casamento, por exemplo. O que é o casamento? O mito lhe dirá o que é o casamento. E a reunião da díade separada. Originariamente, vocês eram um. Vocês agora são dois, no mundo, mas o casamento não é senão o reconhecimento da identidade espiritual. É diferente de um caso de amor, não tem nada a ver com isso. É outro plano mitológico de experiência. Quando pessoas se casam porque pensam que se trata de um caso amoroso duradouro, divorciam se logo, porque todos os casos de amor terminam em decepção. Mas o matrimônio é o reconhecimento de uma identidade espiritual. Se levamos uma vida adequada, se a nossa mente manifesta as qualidades certas em relação à pessoa do sexo oposto, encontramos nossa contraparte masculina ou feminina adequada. Mas se nos deixarmos distrair por certos interesses sensuais, iremos desposar a pessoa errada. Desposando a pessoa certa, reconstruímos a imagem do Deus encarnado, e isso é que é o casamento.
CAMPBELL: O que temos hoje é um mundo “des-mitificado”. E, em conseqüência, meus estudantes, hoje, estão muito interessados em mitologia, porque os mitos lhes trazem uma mensagem. E eu posso dizer que espécie de mensagens o estudo de mitologia traz aos jovens de hoje. Sei o que esse estudo fez por mim, e sei que está fazendo alguma coisa por eles. Quando vou dar uma conferência em alguma faculdade, encontro uma sala abarrotada de estudantes que vieram ouvir o que tenho a dizer.
MOYERS: Gostaria que me dissesse o que você acha que a mitologia, as histórias que eles vão ouvir de você, podem fazer por eles.
CAMPBELL: São histórias sobre a sabedoria de vida, realmente são. O que estamos aprendendo em nossas escolas não é sabedoria de vida. Estamos aprendendo tecnologias, estamos acumulando informações. Há uma curiosa relutância de parte da administração universitária em indicar os valores de vida de seus assuntos. Nas nossas ciências, hoje e isso inclui antropologia, lingüística, o estudo de religiões e assim por diante, verifica se uma forte tendência à especialização. E você só compreenderá essa tendência quando tiver urna idéia da quantidade de coisas que o pesquisador universitário precisa saber para se tornar um especialista competente. Para estudar o budismo, por exemplo, você precisa ser proficiente não apenas em todas as línguas européias, nas quais se dão os debates sobre orientalismo, particularmente o inglês, o francês, o alemão e o italiano, mas também em sânscrito, chinês, japonês, tibetano e várias outras línguas. Ora, isso é uma tarefa colossal. Tal especialista não tem como dedicar parte do seu tempo às relações entre os iroqueses e os algonquinos. A especialização tende a limitar o campo de problemas de que o especialista se ocupa. Ora, quem não é um especialista mas um generalista, como eu, vê aqui algo que aprendeu com um especialista, mais além algo que aprendeu com outro especialista mas a nenhum deles ocorreu perguntar por que isso ocorre aqui e também ali. Com isso, o generalista este, aliás, é um termo pejorativo, no mundo acadêmico lida com uma escala de problemas que, você poderia dizer, são mais genuinamente humanos do que especificamente culturais.
CAMPBELL: A mitologia lhes ensina o que está por trás da literatura e das artes, ensina sobre a sua própria vida. É um assunto vasto, excitante, um alimento vital. A mitologia tem muito a ver com os estágios da vida, as cerimônias de iniciação, quando você passa da infância para as responsabilidades do adulto, da condição de solteiro para a de casado. Todos esses rituais são ritos mitológicos. Todos têm a ver com o novo papel que você passa a desempenhar, com o processo de atirar fora o que é velho para voltar com o novo, assumindo uma função responsável.
Quando um juiz adentra o recinto do tribunal e todos se levantam, você não está se levantando para o indivíduo, mas para a toga que ele veste e para o papel que ele vai desempenhar. O que o torna merecedor desse papel é a sua integridade como representante dos princípios que estão no papel, e não qualquer idéia preconcebida a seu respeito. Com isso, você está se erguendo diante de uma personagem mitológica.
[…]
MOYERS: Como podemos viver sem mitos, então?
CAMPBELL: Cada indivíduo deve encontrar um aspecto do mito que se relacione com sua própria vida. Os mitos têm basicamente quatro funções.
A primeira é a função mística e é disso que venho falando, dando conta da maravilha que é o universo, da maravilha que é você, e vivenciando o espanto diante do mistério. Os mitos abrem o mundo para a dimensão do mistério, para a consciência do mistério que subjaz a todas as formas. Se isso lhe escapar, você não terá uma mitologia. Se o mistério se manifestar através de todas as coisas, o universo se tornará, por assim dizer, uma pintura sagrada. Você está sempre se dirigindo ao mistério transcendente, através das circunstâncias da sua vida verdadeira.
A segunda é a dimensão cosmológica, a dimensão da qual a ciência se ocupa mostrando qual é a forma do universo, mas fazendo o de uma tal maneira que o mistério, outra vez, se manifesta. Hoje, tendemos a pensar que os cientistas detêm todas as respostas. Mas os maiores entre eles dizem-nos: “Não, não temos todas as respostas. Podemos dizer lhe como a coisa funciona, mas não o que é”. Você risca um fósforo – o que é o fogo? Você pode falar de oxidação, mas isso não me dirá nada.
A terceira função é a sociológica – suporte e validação de determinada ordem social. E aqui os mitos variam tremendamente, de lugar para lugar. Você tem toda uma mitologia da poligamia, toda uma mitologia da monogamia. Ambas são satisfatórias. Depende de onde você estiver. Foi essa função sociológica do mito que assumiu a direção do nosso mundo e está desatualizada.
MOYERS: Como assim?
CAMPBELL: Princípios éticos. As leis da vida, como deveria ser, na sociedade ideal.
Todas as páginas e páginas de Jeová sobre que roupas usar, como se comportar diante do outro, e assim por diante, no primeiro milênio antes de Cristo. Mas existe uma quarta função do mito, aquela, segundo penso, com que todas as pessoas deviam tentar se relacionar – a função pedagógica, como viver uma vida humana sob qualquer circunstância. Os mitos podem ensinar lhe isso.